“Campo dos Sonhos” (Field of Dreams), “Livro de Receitas” (Cookbook) e “Quebra-cabeça incompleto” (Incomplete puzzle)
Autor: Felipe Borges
Mestre em Ecologia e Conservação - LEI UFMS
Revisão textual por: Letícia K. Reis e Letícia C. Garcia
Os ecossistemas naturais podem apresentar níveis de complexidade surpreendentes. Em muitos locais observamos complexas interações entre organismos que animam processos fundamentais e a sustentabilidade do ambiente. Perturbar tal dinâmica, além de comprometer essa propriedade do meio, muitas vezes significa a perda irreparável de espécies e serviços ecossistêmicos. Nesse contexto, a restauração ecológica é a atividade que busca promover os processos autogênicos em áreas degradadas, por isso lida diretamente com o restabelecimento dessas redes de interações essenciais à manutenção dos habitats. Diante da urgente demanda causada pela pressão humana contínua sobre os ambientes naturais, restaurador@s trabalham aliados à uma ciência ainda recente e se debruçam sobre quebra-cabeças desafiadores: complexos cenários de restauração demandam o reconhecimento de diversos elementos.
No entanto, quando muitas dessas informações faltam, como proceder? Como agir em relação à imagem quando muitas peças do quebra-cabeças faltam? Uma imagem mental que temos quando pensamos rapidamente na restauração de uma floresta é a presença de inúmeras formas, tamanhos e cores de plantas. Quando muito podemos incluir na imagem alguns animais, aqui e acolá. Porém, uma reflexão mais demorada nos leva a considerar as reais possibilidades de ambientes tão diversificados: Insetos, fungos, bactérias e tantos outros seres, no solo, na água, nas diversas estruturas da vegetação. Sobre esses muitos componentes, a literatura disponível acerca do efeito das intervenções aplicadas ainda é limitada. Um campo ainda tão desconhecido assim sugere muita cautela para os projetos de restauração na definição de seus objetivos e metas, sob pena de incorrerem no que Palmer et al. (1997) e Hilderbrand et al. (2005) nomeiam como mitos da restauração. Um mito é uma narrativa alegórica capaz de transmitir concepções de fatos que nem sempre são verdades. Dentre os vários sugeridos pelos autores, destacamos 2 deles que estão intimamente relacionados à complexa tarefa de restauração da biodiversidade. São eles, o mito do chamado “livro de receitas” e o do “campo dos sonhos”
As diferenças estruturais entre áreas em restauração ecológica e suas imediações ainda submetidas à perturbação por atividade pastoril são flagrantes, como ilustrado nas imagens. Mas o que reconhecemos como restauração, somente o aumento na densidade e diversidade de plantas? Ou será que muitos outros organismos, por vezes menos aparentes, não são também fundamentais?
O mito do “livro de receitas” é a narrativa que considera real a capacidade de intervir em uma área utilizando técnicas não exatamente adaptadas ao contexto, ou seja, não validadas naquele cenário. Por sua vez, o mito do “campo dos sonhos” é a narrativa de que a restauração dos componentes físicos de uma área degradada garante, necessariamente, a recolonização. Por exemplo, com a reconstrução da estrutura da vegetação, a fauna estaria apta a recolonizar a área em restauração. No entanto, multiplicam-se as evidências de que características como o histórico de perturbação na área, na paisagem e o conjunto de ações a serem tomadas são determinantes para o sucesso da restauração.
Ainda, recentes revisões apontam nosso desconhecimento crônico acerca do efeito sobre muitos dos componentes da biodiversidade, nos mais diversos ambientes. Podemos entender que incorrer nos mitos significa aceitar hipóteses de maneira a não reconhecê-las como tais. Assim posto, em muitos casos, estamos aceitando hipóteses que simplificam processos flagrantemente complexos e os mitos representam bem tais escolhas. Mas não seria possível um mito que fosse a alegoria do desafio atual da restauração frente às próprias limitações?
Restaurar ecologicamente uma determinada área significa intervir de maneira racional na promoção da biodiversidade, a qual é, muitas vezes, fundamental para os processos autogênicos locais. Em paisagens já intensamente degradadas no cerrado brasileiro encontramos uma grande diversidade de artrópodes cujas figuras acima são alguns dos exemplos. Será que conhecemos todas as peças do quebra-cabeças que nos propomos montar?
Essa questão é discutida na recente revisão bibliométrica desenvolvida pela equipe do LEI e que integrou a minha dissertação. Nesse estudo, que já se encontra em preparação para publicação, os autores fazem um levantamento global da produção científica acerca do importante grupo dos invertebrados terrestres na ecologia da restauração. O estudo tem por objetivo guiar novas pesquisas indicando lacunas no conhecimento e também guiar a tomada de decisão de restaurador@s, baseadas no conhecimento já acumulado. Uma das principais constatações da pesquisa é o imenso desafio das intervenções de restauração frente ao que não sabemos, isso para organismos que representam boa parte da diversidade e são essenciais em vários processos ecológicos. Assim, reconhecendo que a questão dos mitos é substancial e pode ser generalizada, os autores sugerem um novo, capaz de reforçar a complexidade da questão na narrativa alegórica.
Para tanto, é necessário que voltemos para a primeira questão deste texto e sua figura sugerida: o quebra-cabeças. Cada peça que falta aponta para a imprevisibilidade em relação à imagem completa, assim como cada cenário de restauração que desconhecemos em relação ao recém-gerado habitat. Portanto, um proposto mito do “quebra-cabeças incompleto” poderia ser capaz de evocar um caráter mais pragmático em relação a questão da complexidade na restauração. A literatura disponível ainda é incipiente quanto a diversos grupos de organismos, ou seja, não sabemos ao certo quais são afetados positivamente pelas intervenções de restauro. Assim, um posicionamento realista quanto aos objetivos e metas dos projetos seria considerar o que já sabemos ponderando por quanto ainda desconhecemos: A cada peça do quebra-cabeça que encaixamos, reconhecidas através do conhecimento levantado pelo monitoramento dos diversos componentes da biodiversidade, temos maior chance de saber se conseguimos completar a elaborada imagem original desse jogo de reconstrução.
Referências:
Cross, S. L., Bateman, P. W., & Cross, A. T. (2019)b. Restoration goals: Why are fauna still overlooked in the process of recovering functioning ecosystems and what can be done about it? Ecological Management & Restoration. 21: 4-8.
Hilderbrand, R. H., Watts, A. C., & Randle, A. M. (2005). The myths of restoration ecology. Ecology and Society, 10: 19p .
Palmer, M. A., Ambrose, R. F., & Poff, N. L. (1997). Ecological theory and community restoration ecology. Restoration Ecology, 5: 291-300.
Prach, K., Durigan, G., Fennessy, S., Overbeck, G. E., Torezan, J. M., & Murphy, S. D. (2019). A primer on choosing goals and indicators to evaluate ecological restoration success. Restoration Ecology. 27: 917– 923.
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